#musiquinta
Satolep, noite
No meio de uma guerra civil
O luar na janela não deixava a baronesa dormir
A voz da voz de Caruso ecoava no teatro vazio
Aqui nessa hora é que ele nasceu segundo o que contaram pra mim
Joquim era o mais novo, antes dele haviam seis irmãos
Cresceu o filho bizarro com o bizarro dom da invenção
Louco, Joquim louco, o louco do chapéu azul
Todos falavam e todos sabiam, quando o cara aprontava mais uma
Joquim, Joquim
Nau da loucura no mar das idéias
Joquim, Joquim
Quem eram esses canalhas que vieram acabar contigo?
Muito cedo ele foi expulso de alguns colégios e jurou: "Nessa lama eu não me afundo mais". Reformou uma pequena oficina com a grana que ganhara vendendo velhas invenções.
Levou pra lá seus livros, seus projetos, sua cama e muitas roupas de lã. sempre com frio, fazia de tudo pra matar esse inimigo invisível
A vida ia veloz nessa casa no fim do fundo da América do Sul.
O gênio e suas máquinas incríveis que nem mesmo Julio Verne sonhou.
Os olhos do jovem profeta vendo coisas que só ontem fui ver.
Uma eterna inquietude e virtuosa revolta conduziam o libertário.
Dezembro de 1937.
Uma noite antes de sair, chamou a mulher e os filhos e disse: "Se eu sumir procurem logo por mim". E não sei bem onde foi só sei que teria gritado a uma pequena multidão: "ao porco tirano e sua lei hedionda Nosso cuspe e o nosso desprezo!"
Joquim, Joquim
Nau da loucura no mar das idéias
Joquim, Joquim
Quem eram esses canalhas que vieram acabar contigo?
No meio da madrugada, sozinho, ele foi preso por homens estranhos. Embarcaram num navio escuro e de manhã foram pra capital. Uns dias mais tarde, cansado e com frio, Joquim queria saber onde estava, e num ar de cigarros de uns lábios de cobra, ele ouviu: "Estás onde vais morrer".
Jogado numa cela obscura entre o começo do inferno e o fim do céu: foi assim que depois de muitas histórias a mulher enfim o encontrou. E ele ainda ficou ali por mais dois anos, eempre um homem livre apesar da escravidão. As grades, o frio, mas novos projetos, entre eles um avião.
O mundo ardia na guerra quando Joquim louco saiu da prisão. Os guardas queimaram os projetos e os livros, e ele apenas riu, e se foi. Em Satolep alternou o trabalho com longas horas sob o sol. Num quarto de vidro no terraço da casa lendo Artaud, Rimbaud, Breton.
Joquim, Joquim
Nau da loucura no mar das idéias
Joquim, Joquim
Quem eram esses canalhas que vieram acabar contigo?
No início dos anos 50 ele sobrevoava o Laranjal num avião construído apenas das lembranças do que escrevera na prisão. E decidido a fazer outros, outros e outros
Joquim foi ao Rio de Janeiro - aos orgãos certos, os competentes de coisa nenhuma - tirar um licença.
O sujeito lá responsável por essas coisas, lhe disse: "Está tudo certo, tudo muito bem. O avião é surpreendente, eu já vi, mas a licença não depende só de mim". E a coisa assim ficou por vários meses, o grande tolo lambendo o mofo das gravatas na luz esquecida das salas de espera... o louco e seu chapéu.
Um dia alguém lhe mandou um bilhete decisivo e, claro, não assinou embaixo. "Desiste", estava escrito, "Muitos outros já tentaram e deram com os burros n'água. É muito dinheiro, muita pressão, nem Deus conseguiria". E o louco cansado, o gênio humilhado, voou de volta pra casa.
Joquim, Joquim
Nau da loucura no mar das idéias
Joquim, Joquim
Quem eram esses canalhas que vieram acabar contigo?
No final de longa crise depressiva ele raspou completamente a cabeça e voltou à velha forma com a força triplicada por tudo, tudo o que passou.
Louco, Joquim louco, o louco do chapéu azul: todos falavam e todos sabiam que o cara não se entregava.
Deflagrou uma furiosa campanha de denúncias e protestos contra os poderosos. Jogou livros e panfletos do avião, foi implacável em discursos notáveis. Uma noite incendiaram sua casa e lhe deram quatro tiros: do meio da rua ele viu as balas chegando lentamente.
Os assassinos fugiram num carro que, como eles,nunca se encontrou.
Joquim cambaleou ferido alguns instantes e acabou caído no meio-fio. Ao amigo que veio ajudá-lo, falou: "Me dê apenas mais um tiro por favor... Olha pra mim: não há nada mais triste que um homem morrendo de frio".
Joquim, Joquim
Nau da loucura no mar das idéias
Joquim, Joquim
Quem eram esses canalhas que vieram acabar contigo?
youtube.com/watch?v=IfLTGo9orI…
Marcelo
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