Gerardo Santiago
O GOVERNO LULA É NEOLIBERAL?
Para responder é bom primeiro conceituar o que é neoliberalismo. O capitalismo em sua origem era o capitalismo liberal, um sistema de superexploração da classe trabalhadora no qual o capital tinha total liberdade para impor às massas populares uma condição de vida pouco acima da mera subsistência. A sua ideologia era o liberalismo clássico de autores como Adam Smith e John Locke. Foi esse capitalismo que promoveu a escravidão, o colonialismo e o racismo o capitalismo realmente existente durante o século XIX e até a Primeira Guerra Mundial.
A reação dos trabalhadores e dos povos contra esse sistema gerou, entre outros movimentos sociais e correntes políticas, o sindicalismo, o anarquismo e o marxismo, este último a partir da Revolução Russa de 1917 oferecendo uma ameaça concreta inédita na forma de um modelo alternativo de economia e de sociedade. A crise de 1929 e os anos de depressão subsequentes, combinados com o desafio comunista ao capitalismo, levaram ao ocaso do liberalismo e sua substituição pelo keynesianismo, cuja melhor expressão política era a socialdemocracia clássica e cujo modelo era o estado de bem estar social proposto por ela como forma de conter o avanço do comunismo diminuindo a desigualdade econômica no âmbito do capitalismo.
Com a Guerra Fria caminhando para um desfecho da forma como se deu, com o colapso do bloco soviético e o consequente afastamento da ameaça comunista, se criaram as condições históricas e políticas propícias a uma retomada do liberalismo, quer dizer, ao neoliberalismo, que consistia basicamente em abandonar o keynesianismo e voltar a um quadro de superexploração dos trabalhadores e de maximização dos lucros do capital através de privatizações, do desmonte do estado de bem social, retrocessos na legislação social, tributária, previdenciária e trabalhista e desregulamentação da atividade econômica e dos mercados. Esse tipo de processo regressivo teve como primeiro "laboratório" o Chile de Pinochet e alguns anos depois se iniciou no Reino Unido com Thatcher e nos Estados Unidos com Reagan. O fim do "socialismo real" na URSS e no leste europeu possibilitou que se disseminasse globalmente.
No plano político e ideológico, a derrota e a marginalização da esquerda anticapitalista na onda do "fim da História" idealizado por Fukuyama fez com que a socialdemocracia keynesiana do pós-Guerra fosse gradualmente se adaptando ao novo contexto histórico de hegemonia ideológica neoliberal, abrindo mão de suas propostas reformistas e distributivistas e aderindo a um "consenso" macroeconômico e político nessa linha. O exemplo do "New Labour" de Tony Blair é emblemático desse tipo de processo, mas está longe de ser o único.
Em Pindorama, o neoliberalismo chegou com algum atraso, por conta de uma série de fatores, o principal deles sendo que dos anos finais da ditadura empresarial militar até 1989, ano da primeira eleição presidencial pelo voto popular desde 1960, o país viveu uma longa onda de greves e mobilizações populares que além de gerar o PT, a CUT e o MST, foi determinante para a conquista de direitos sociais e trabalhistas na Constituição de 1988, o que ia na contramão da maré neoliberal global. Na eleição de 1989, Lula ainda era o bicho papão cuja possível vitória faria o então presidente da FIESP, Mario Amato, emigrar.
O impeachment de Collor acabou adiando para o período FHC o início da implementação do neoliberalismo no Brasil. Durante esses oito anos o lulismo articulou um discurso de oposição a esse projeto, ainda que na prática essa oposição progressivamente fosse se moderando, o que foi facilitado pelo refluxo das lutas sindicais e populares na década de 1990. Em 2002, Lula rasga a fantasia e assina a célebre "Carta aos Brasileiros", que nada mais foi que a sua capitulação ao neoliberalismo, quer dizer, a aceitação por ele das mesmas premissas ideológicas em geral e macroeconômicas em particular adotadas por FHC. O banqueiro Henrique Meirelles no BACEN era como uma garantia do cumprimento do que Lula prometia à classe dominante naquela famigerada carta, o de que não haveria uma reversão do modelo neoliberal inaugurado pelos governos tucanos. Essa promessa foi cumprida.
Desde janeiro de 2003, início do primeiro mandato de Lula, já se passaram vinte e dois anos, dos quais o PT ocupou a Presidência da República por dezesseis, dez com Lula (até agora) e seis com Dilma. Em nenhum momento se tentou reverter as políticas neoliberais, nem as anteriores ao início do período lulista no governo, nem as dos seis anos de Temer e Bolsonaro entre 2016 e 2022. Políticas compensatórias aos efeitos sociais deletérios do neoliberalismo mantido pelo lulismo no governo passaram a ser vendidas como se fossem opostas ao modelo, mesmo fazendo parte do repertório de instituições como o FMI e o Banco Mundial, entre outras.
O FIES e o ProUni transferiram muitos bilhões de dinheiro público para empresas privadas com finalidade lucrativa da área da educação e são festejados por uma "esquerda" que perdeu o norte ideológico como exemplos de "inclusão social". Na área da saúde, prosperaram e prosperam empresas administradoras de planos privados como a Qualicorp, enquanto o SUS vai sendo enfraquecido através de terceirizações que também se tornam fonte de lucros para o capital privado. O que foi privatizado continua privatizado e nem se fala disso. O mesmo vale para a contrarreforma trabalhista de Temer e a "independência" do Banco Central. No momento em que escrevo este texto, o Brasil tem a taxa de juros real mais alta do mundo, estando em segundo lugar a Rússia, um país em guerra!
O discurso lulista culpa a "correlação de forças" por essa sua alegada incapacidade de mudar a realidade, entendida essa expressão de forma rasteira e legalista como sendo basicamente a composição do Parlamento nacional dominado por forças conservadoras ou mesmo reacionárias. Abandona-se totalmente a crítica ao sistema político e eleitoral colonizado pelo poder econômico. Qualquer proposta de promover a partir do governo mobilizações populares visando a mudar a tal correlação de forças é um anátema. Quando elas ocorrem contra a vontade do lulismo como nas Jornadas de Junho de 2013, ele as desqualifica e reprime e Lula ainda tem a cara de pau de dizer que "foi coisa da CIA".
Nesse terceiro mandato de Lula e quinto do PT todo o descrito acima se acentuou. Até agora o cúmulo da deriva conservadora e neoliberal do lulismo foi o PL 4614/24, que mudou para pior a política de reajuste do salário mínimo, diminuiu o número de beneficiados pelo abono salarial e endureceu os critérios para ter acesso ao BPC. O fato de que o projeto apresentado pelo governo Lula era mais radicalmente neoliberal que aquilo que foi aprovado pelo Parlamento é particularmente escandaloso: no debate sobre o BPC o "Centrão" ficou à esquerda do PT! Além de ser um aparente paradoxo, esse fato mostra a falsidade do álibi da "correlação de forças", não é que o governo petista tenha tentado aprovar uma reforma a favor dos trabalhadores e tenha sido derrotado pela maioria parlamentar conservadora, foi exatamente o contrário.
No tema das privatizações o marketing político lulista quer nos convencer de que "parcerias público-privadas" e "concessões" não seriam privatizações por não haver alienação do patrimônio público, a sua venda para agentes econômicos privados como aconteceu nos governos tucanos. Esse argumento é um insulto à inteligência alheia, porque se um serviço público prestado pelo estado passa a ser explorado por uma empresa privada com finalidade lucrativa, a forma como é operada essa mudança, a modalidade jurídica adotada para viabilizá-la, nada disso altera a sua natureza, é privatização sim.
Com base em que fatos e argumentos se pode sustentar com um mínimo de seriedade que um governo que tem a "austeridade fiscal" como prioridade absoluta e no qual presídios, escolas públicas, estradas, saneamento básico e terminais portuários e aeroportuários tem a sua privatização financiada e assessorada pelo BNDES, não é neoliberal? Em que momento o lulismo no governo se chocou contra o neoliberalismo? Qual a briga que ele comprou contra a classe dominante durante os dezesseis anos (até o momento) no Palácio do Planalto?
Os únicos momentos em que Lula e o PT se lembram de que o neoliberalismo é ruim para o povo e os trabalhadores são os de campanha eleitoral presidencial de quatro em quatro anos, que são também os únicos momentos em que as massas populares são convocadas às ruas por eles, para cantar "Lula lá" em seus comícios eleitorais. O script é sempre o mesmo, com pequenas variações: depois de vencer uma eleição dizendo que a direita vai tirar a comida do povo e enriquecer ainda mais os banqueiros, chamar um banqueiro para tomar conta do galinheiro a partir do Banco Central ou do ministério da Fazenda.
Desde 2003, Lula coloca como prioridade a segurança alimentar, que cada um possa comer três vezes por dia. Realmente é algo básico demais, mas o fato de que isso não tenha sido definitivamente resolvido até hoje e depois de tantos anos de lulismo nos mostra o que? Que o modelo social e econômico concentrador de riqueza e renda conhecido como neoliberalismo segue espoliando os mais pobres ou não? Como disse Mao Zedong, a prática é o critério da verdade. E define aquilo que é neoliberal ou não também, me parece.