Excelente texto sobre caráter socialista da China:
"O debate sobre o caráter do socialismo chinês dentro da esquerda brasileira é precário, envolto em misticismos, falácias e, não incomum, racismo. Amplos setores da esquerda, incluindo os marxista-leninistas, se escoram em argumentação fácil pra detratar o socialismo com características chinesas.
Diga-se, esses setores, continuamente, lançam mão do conceito de Trotsky sobre "burocracia" para difamar a China e, por extensão, o Partido Comunista Chinês, PCCh, uma teoria frágil criada pelo ucraniano para depreciar e fazer propaganda anticomunista contra a URSS, o primeiro país socialista da história humana.
Além do problema óbvio (burocracia seria exatamente o quê nesse contexto com a China, organizar o Estado para entregar obras e serviços para a população?), eu diria mais, o discurso sobre "burocracia" usado pelos trotskistas sequer é uma “teoria”, stricto sensu, tratando-se de mero dispositivo retórico usado como jornalismo de guerra contra os países socialistas.
Além do mais, a "teoria" trotskista, mutatis mutandis, é estruturalmente a mesma formulada pelo conservador-liberal anticomunista Max Weber em seu "Economia e Sociedade", de 1922, (obra póstuma). Vejam, Trotsky publica “A Revolução Traída" (sua principal obra sobre a “burocracia” soviética), em 1936, na Noruega social-democrata do Partido Trabalhista (Arbeiderpartiet) de Johan Nygaardsvold, que detinha interesses incomuns em relação aos modelos administrativos parcialmente sublinhados nas teorias sobre “burocracia” descritas por Max Weber. Além do mais, a Noruega, em processo de estruturação do seu Estado pós-independência, via em Weber uma referência fundamental para compreender modelos de “organização racional” do Estado. Não é preciso muito esforço para identificar de onde surgiram as influências do ucraniano.
Antes que apareçam os prevaricadores costumazes de uma certa ala de esquerda que pouco lê e muito desdenha, o próprio Ernest Mandel, fundador e dirigente da Quarta Internacional, chegou mesmo a fazer esse comparativo entre as teorias de Weber e Trotsky em suas obras “Le sens de la bureaucratie” (O Significado da Burocracia), publicado em 1965 e "Power and Money: A Marxist Theory of Bureaucracy" (Poder e Dinheiro: Uma Teoria Marxista da Burocracia), de 1992.
Adiante...
A crítica sobre a “supressão política” insinuando que o PCCh é um partido “totalitarista” que pratica uma “tirania perfeita”, formulada por alguns setores de esquerda, nada mais é do que a adaptação prática, em caráter de propaganda anticomunista, da teoria da “dominação racional-legal” de Max Weber, baseada no conceito de dominação das pessoas por meio de regras impessoais e funções técnicas. Vejam que, além disso, tais formulações flertam criminosamente com o conceito de “totalitarismo” da liberal anticomunista Hannah Arendt (1951), e do muito cristão liberal e empirista John Locke em seu segundo “Treatises of Government" (da obra "Dois Tratados sobre o Governo"), de 1689, que define a tirania como um governo que viola os “direitos naturais” (vida, liberdade, propriedade).
O cenário piora, para os anticomunistas de esquerda, não só a China pratica uma espécie de tirania, como pratica uma “tirania de mercado” (uma aberração retórica que não encontra nenhum amparo na realidade). Com o perdão de Domenico Losurdo, refaço os apontamentos sistematizados por ele a esse respeito, salvis differentiis, não me estranharia que esses mesmos embusteiros apontassem na União Soviética, em seus primeiros anos, uma perfeita “ditadura capitalista” devido à implantação da NEP (a Nova Política Econômica).
É que, para esses grupos, em seu socialismo ideal, não existe fase de transição, não existem estágios econômicos, e, principalmente, não existe a concretização do socialismo como forma política hegemônica no período subsequente às revoluções armadas.
Deng Xiaoping já havia apontado que, com relação ao caráter transitório da China para o socialismo perfeito, haveriam estágios econômicos em que os socialistas conviveriam com alguns modelos econômicos assemelhados ao capitalismo, o que explica, por exemplo, o fenômeno dos milionários chineses, cada vez em menor quantidade diga-se. Sejamos maduros, para se combater o imperialismo e suas formas de dominação e cerco econômico é preciso crescer e prosperar, sair da revolução puramente bélica, de guerra, para uma revolução econômica propriamente dita.
O presidente Xi Jinping reforça diuturnamente o caráter socialista do Estado Chinês, que, apesar de conviver com zonas de capital aberto, mantém o poder político do Estado concentrado nas mãos do partido comunista, que frusta competentemente qualquer plano dos burgueses locais de se organizarem enquanto classe política, característica fundante dos Estados burgueses modernos. Estados em que o poder político está sujeito às ordens do Capital, ou, nas palavras de Walter Benjamin, depois de voltar de uma viagem para Moscou em 1927:
“Numa sociedade capitalista, poder e dinheiro tornaram-se de igual dimensão. Qualquer quantia de dinheiro pode ser convertida em uma porção bem definida de poder e o valor de troca de todo poder é calculável.”
De forma que, as grandes empresas privadas da China, como afirma Elias Khalil Jabbour, estão sujeitas à supervisão, controle e auditoria do Estado chinês, que as obriga, até mesmo, a manter quadros do partido comunista em seus conselhos dirigentes.
A China ainda está na primeira fase de sua fase socialista, frisa Xi Jinping, mas um estado que retirou 800 milhões de pessoas da fome e erradicou a pobreza em seu território, um estado de pleno emprego que preza pela gratuidade e qualidade de serviços essenciais à população com tecnologia de ponta, um Estado que possui uma malha ferroviária mais que o dobro de toda a malha ferroviária do resto do mundo, um Estado que levanta dia após dia cidades modernas e tecnológicas que visam o bem estar de 1,412 bilhão de habitantes, um Estado que preza por parcerias comerciais justas e em benefício mútuo com todos os países que estabelece acordos, não pode, de forma alguma, ser caracterizado como capitalista, ou incorre-se ao erro conceitual de definir o Estado chinês à partir de terminologias vagas que pouco se conectam com a realidade.
O discurso enviesado da esquerda anticomunistas ainda paira no velho conceito da “ameaça chinesa”, discurso racista bastante comum no Ocidente e propagandeado dia após dia pelo governo Donald Trump. E revisa-se o social-imperialismo como categoria analítica válida para caracterizar a China, termo que foi amplamente usado por Enver Hoxha e pelos próprios chineses a partir de 1969 para caracterizar a URSS revisionista pós-Krushov. É claro, partindo do meu ponto de vista, considero que tal caracterização foi um erro tanto do albanês, quanto dos próprios chineses à época.
Hoje essas acusações recaem contra a própria China, particularmente dos adversários trotskistas, o que endossa a tese de Fidel Castro que já em 1966 afirmava que o trotskismo, como “instrumento vulgar do imperialismo”, “sempre foi uma corrente divisionista, alheia à unidade revolucionária."
Partindo das teses de Lênin sobre o imperialismo, não se observa, no caso chinês, guerras por partilha territorial de países e terras, ou que suas empresas pratiquem associações monopolistas internacionais influenciando, inclusive, na soberania interna dos países, como os Estados Unidos vêm fazendo. As práticas de parcerias Sul-Sul do país sequer se caracterizam como modelos de exportação de capitais (como mera exploração de mão de obra barata), o caso africano é emblemático, com a China participando ativamente não só na industrialização dos países, mas desenvolvendo grandes obras de infraestrutura que beneficiam mutuamente as nações.
Por outro lado, se formos observar as teses de Hoxha sobre o social-imperialismo soviético para caracterizar a China, encontraremos muita dificuldade em comprovar, empiricamente, que a China pratica políticas econômicas ou exerce influência para barrar o desenvolvimento e a autonomia dos países com quem matem parcerias, como afirmava Hoxha contra a URSS revisionista. Vale lembrar, aqui, um caso emblemático: durante a pandemia de COVID-19 a China perdoou todas as dívidas que os países africanos tinham com ela.
Sem mais, o caso é que o debate sobre o caráter do socialismo chinês dentro da esquerda brasileira é precário, envolto em muito misticismo, muitas falácias e, principalmente, muito racismo.
A esquerda brasileira deve, neste momento, principalmente, estudar com profundidade o socialismo chinês como referência incontornável para retomar o debate sobre desenvolvimento e projeto nacional.
Não é admissível que um país que em pleno século XXI conviva com índices de analfabetismo, miséria e uma multidão de sem tetos, tenha a displicência de detratar a experiência chinesa, um país que, em trinta anos, colocou o império americano de joelhos."
@austra_lopiteco